Psicologia

Por Aldaíza Sposati


Não dá pra varrer para debaixo do tapete



Em junho deste ano, o Ministério Público de São Paulo instaurou inquérito civil com o objetivo de investigar se o Conselho de Segurança (Conseg), da região de Santa Cecília, na capital paulista, teria tentado impedir a distribuição de alimentos aos moradores de rua. De acordo com o jornal Folha de S. Paulo, a entidade teria pressionado restaurantes e ONGs que atuam na região central a não doarem comida aos moradores de rua como uma forma de expulsá-los.

Não são poucos os que apontam ações desse tipo, muitas delas promovidas pelo poder público local, como uma forma de higienismo social. Pessoalmente, tendo a ver nesse episódio e nas recentes políticas do poder público local a reedição de um velho preconceito, cuja expressão máxima é: ?nem gente eles são?. Qualquer que seja o caso, é clara a postura de tentar varrer para debaixo do tapete esse ?lixo ambulante? que enfeia, incomoda e desvaloriza as regiões nobres da cidade.

Isso ficou claro, por exemplo, quando o governo municipal transferiu serviços destinados à população de rua para os bairros mais afastados. A lógica, estreita, foi a de que a presença do serviço atraía a população de rua para o centro. Logo, tirando o serviço dali, a população desapareceria! Não foi, evidentemente, o que aconteceu. Um mínimo de conhecimento sobre os hábitos da população de rua permitiria antever o que aconteceria.

Para resumir: na primeira vez, o morador se deixa levar até o novo local, para onde o serviço foi deslocado. Ocorre que ele quer retornar para a sua rotina diária, no seu local de origem. É quando descobre que não terá como voltar, a não ser por conta própria. Pode demorar um dia ou uma semana, mas é o que ele acaba fazendo. O que acontece a seguir é o óbvio: ele não quer mais saber de sair do seu pedaço. Ou seja: joga-se fora a oportunidade de um trabalho de acolhimento e de reinserção social desses moradores e a tendência é a de que o problema somente se agrave com o decorrer do tempo.

Rupturas - Vale lembrar que a dificuldade de reinserção de uma pessoa nessas condições é diretamente proporcional ao tempo em que ela vive na rua. A rua vicia. Ao mesmo tempo em que retira a dignidade da pessoa, traz uma sensação de liberdade: não há convenções a seguir, obrigações ou compromissos. Sair dela é uma ruptura, da mesma forma que entrar nela. Assim, quanto antes for feito um trabalho para a ?saída da rua?, maiores serão as possibilidades de que essa pessoa reconstrua sua ressocialização e, com ela, novas relações de apoio e reconhecimento.

A questão das pessoas em situação de rua não é simples. Se levarmos em conta os números do censo realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em 2009, veremos que, no caso de São Paulo, há uma quantidade relativamente pequena de pessoas: perto de 14 mil, em uma população de 11 milhões. A questão é que, sob a designação genérica ?pessoas em situação de rua?, o que temos diante de nós são 14 mil situações diferentes, apesar de aparentemente homogêneas requerendo, cada uma delas, um projeto de trabalho único. É preciso encontrar, em cada pessoa, a motivação que pode fazê-la sair da rua. E isso requer compromisso ético, vontade política, investimentos, pessoal treinado e continuidade no trabalho.

Foi nessa direção que caminharam diversas ações da Prefeitura de São Paulo, em 2002, como os programas Presença Social nas Ruas e o Acolhe, que contavam com equipes treinadas e infraestrura de apoio, além de transporte e controle de vagas de seus ocupantes por uma plataforma digital, o SIS-Rua. Outra iniciativa importante foi a Oficina Boracea, que contava com um núcleo de inclusão digital, centros de serviços e lazer, canis para os animais de estimação e um posto da Caixa Econômica Federal que permitia a abertura de contas com valores reduzidos. Seu fechamento foi um equívoco. Compare-se o Boracea com a tenda instalada no Parque D. Pedro, onde os moradores de rua ficam estirados em precárias condições. Chamar um lugar como esse de ?Jardim da Vida? é, no mínimo, constrangedor!

Uma política adequada deveria começar por respeitar a legislação já existente nesse campo. Refiro-me à Lei Municipal 12.316/97, posteriormente regulamentada pela então prefeita Marta Suplicy por meio do decreto 40.232/01. Refiro-me, também, ao recente Decreto Federal 7.083, de 23 de dezembro de 2009, que instituiu a Política para a População em Situação de Rua e criou um Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento de sua efetivação.

Uma vez que me dirijo, aqui, aos psicólogos, penso que a população em situação de rua também deveria ser alvo da atenção da área da Saúde e, em particular, da Saúde Mental. Desconheço levantamentos que mostrem quantos, entre os moradores de rua, são egressos de instituições psiquiátricas, mas a experiência me faz crer que não são poucos. Há, aqui, um campo importante de atuação, que demanda políticas públicas intersetoriais e um debate mais aprofundado entre psicólogos e assistentes sociais.

Acredito, por fim, que sempre existirão pessoas nessas condições, mas, também, que é possível abordar essa questão de uma forma que seja ao mesmo tempo humana e eficaz. Gente não pode ser tratada como lixo a ser escondido sob o tapete.

Fonte: Jornal Psi - CRPSP
Imagem fonte -   http://centrovalorizacao.zip.net/

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